Betadine e Água Oxigenada

Perdia-se  a conta aos arranhões e nódoas negras. Se os tempos fossem outros era possível que a competência dos nossos pais fosse questionada, mas ninguém tinha a culpa dos miúdos que nasciam arraçados de Tarzan e com constantes ataques de bichos-carpinteiro.

Naquela altura, que eu me lembre, as bicicletas não tinham travões. Pelo menos, eu fingia que não tinham. Lembrava-me deles quando queria fazer uma manobra qualquer. Uma manobra tão espectacular que acabava comigo a saltar por cima da bicicleta, o que fazia com que os meus joelhos fossem amigos próximos da estrada mal alcatroada. Depois lá ia eu para casa. Bicicleta na mão, lágrima no olho e joelho feito num oito. Estava de volta no dia seguinte. Eu e todos os outros miúdos. Éramos todos iguais: demasiado aventureiros e sem noção do perigo.

Tínhamos o hábito de subir a árvores e fugir de casa. A última parte é mentira. Só nos escondíamos em terrenos cheios de silvas e ervas à espera que fossem à noite nossa procura. Anos mais tarde percebemos que conseguiam ouvir os nossos risos à distância. Nós é que tínhamos tendência para ficar surdos quando nos chamavam para jantar, tomar banho ou dar um beijinho à avó que estava à nossa espera. Muito esperavam as avós naquela altura.

Éramos os donos do nosso mundo. De cabeça levantada, peito cheio, joelhos em sangue e cara vermelha de tanto correr. Havia sempre tempo para mais uma corrida. Mesmo quando já era noite escura e chamavam por nós, mas nessa altura já íamos rua abaixo a ver quem ganhava daquela vez.

Caíamos todos os dias. Ou quase. Betadine, água oxigenada, penso rápido, um nó na garganta o beijo da mãe que tudo cura. 

Ficaram as marcas das quedas e dos curativos que continuam a contar a sua história. A vez em que só existia o travão da frente, a outra em que se jurou que o ramo da árvore aguentava. Vivíamos com a cabeça cheia de sonhos e de sorriso colado na cara. Mesmo quando a água oxigenada ardia nas feridas.


Texto publicado na edição de Junho de 2019 da Revista DADA

Comentários

  1. Bem pertinente sua escolha de hoje e eu gosto!!! Bj

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  2. Ainda hoje tenho marcas desses belos tempos :-)
    Adorava ver a água oxigenada a borbulhar nas feridas e também gostava de arrancar as postelas (por mais que a minha mãe me dissesse para não o fazer para não ficar com marcas) da tintura vermelha é que eu não gostava muito nem do álcool!

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    1. Também tenho várias marcas das vezes em que me esqueci que a bicicleta tinha dois travões ou de quando saltei do baloiço. ;)

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  3. Era tão bom andar na rua... Beijinhos

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    1. Era o melhor. Andar a correr na rua e a brincar até chegar a hora de dormir :)

      Beijinhos

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