Abril

A mudança começou de noite e quando o dia amanheceu já as novidades estavam nas ruas e na boca de todos. Demasiado longe do sítio onde tudo acontecia, mas com a cabeça na mudança, uma menina passou o dia agarrada ao rádio a ouvir o que aquelas vozes que lhe acompanhavam os dias lhe tinham para contar sobre o que saíra à rua nessa noite.

Havia em si uma necessidade de mudança e uma crença que aquele era o momento. Dali para a frente não se sabe o que vem, mas há a esperança que seja para melhor. Só pode ser.

Os dias têm de ser melhores do que os que se viveram até aquele momento.  Do que a pobreza de uma sardinha a dividir por três ou  trocados contados e em falta para as compras que eram essenciais. Tinham de ser mais do que conversas sussurradas na rua e quebradas com olhares por cima do ombro só para confirmar que mais ninguém ouve para ir contar mais do que do que foi dito.

É essa a esperança que cresce no coração daquela menina que ouve o rádio. Que  segue os avanços e as esperas dos soldados. Que sabe que as pessoas não cumpriram o pedido e saíram às ruas. Espera que a mudança esteja a bater-lhe à porta.

Que seja o fim dos deveres mais do que os direitos, a culpa mais do que o viver, as prisões cheias de quem só ousou pensar. O fim dos dias cinzentos e das proibições sem sentido.

O fim de um tempo onde os meninos e as meninas aprendiam separados, onde o álcool era o normal dos dias e onde uns enriqueciam a denunciar o que outros às vezes nem tinham feito. O tempo em que uma criança deixava os bancos da escola para tirar pedra dos campos e levar umas moedas para casa.

Era isso que aquele rádio dava: a esperança de dias melhores, de uma vida diferente. Com mais direitos para os que suavam debaixo do calor do campo e com menos medo. Era o medo que reinava nos dias que aquela menina conhecera na sua vida. O medo do que se diz, do que se faz, do que os outros pensam.  

Para quem nasceu depois dos cravos saírem à rua torna-se complicado imaginar o mundo quando a liberdade era um luxo a que ninguém tinha direito. É difícil imaginar que, para aquela menina, mesmo que o dia seguinte seja igual a todos os outros, mesmo que a mudança demore a chegar aquele interior onde nasceu, ela sabe que já aconteceu e isso conforta a alma.


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