Chita à chuva

- Toda gente sabe que o pano fica de molho antes de costurar.

Há sempre uma alma iluminada que acha que só ela encontrou a fila em que o Senhor estava a distribuir a inteligência. E, naquele dia, era uma das almas que se recolhia debaixo de telha e nem uma gota lhe tocou. Se não fosse assim, eu queria ver. Aliás, assim que a chuve deu uma aberta, era vê-la a correr rua acima. Quando voltou a aparecer, a saia de festa tinha dado lugar à de todos os domingos, mas os outros é que não sabiam o que faziam.

Como se, em pleno Agosto, alguém conseguisse prever que Deus ia mandar chuva na altura em que saía o primeiro andor. Estava ali o povo todo reunido, de terço na mão e a Ave Maria na ponta da língua, quando começou a cair aquela chuva miudinha que não tardou a engrossar. Aí é que foi. Já não havia terço nem reza. Era a carteira a tapar a parte de trás e mão a puxar a da frente que ninguém queria mostrar as vergonhas num sítio daqueles.
Era por isso que este ano a roupa estava de molho. Nova, mandada fazer com os tostões poupados a custo, mas já de molho não fosse o Senhor voltar a trocar-lhe as voltas.

- Isto na hora da procissão nunca se sabe. 

É  o pendão a sair e o vento a levantar-se. Pode estar o dia mais seco do ano que não importa. Naquela hora, há sempre uma aragem que desce a rua e ganha força na porta da igreja. 

Sai Nossa Senhora, devoção imaculada, e é ver as mãos a juntarem-se junto aos lábios que se mexem sem que a reza se chegue a ouvir. Um sinal da cruz e a cabeça a pender para a frente num ato de súplica e devoção. 
 
- Daqui a pouco, estão a falar de todos.

Depois da procissão recolher, as pernas já estavam cansadas e o caminho para casa era sempre longo e havia tempo para parar a meio do caminho e, de carteira debaixo do braço e mão na cintura, trocar dois dedos de conversa que davam nuns quantos cortes na casaca do vizinho.



- Mas tu viste...

Então não tinha visto? E se não tivesse também não importava nada que aquilo são coisas que as pessoas dizem para se entreter. Dizem de dia o que sonham de noite, não importa se é dia santo ou não. 

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Reza a história que, em tempos que já lá vão, choveu na saída da procissão e os vestidos de chita das senhoras encolheram. 



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