O tempo da outra senhora

Era a vida que conheciam. Pés descalços. Trabalho de sol a sol. Pouca comida na mesa. Os filhos que vinham quando queriam sem que nada se pudesse fazer para o impedir. Às vezes, até tentavam, mas em segredo, com mezinhas passadas por meias palavras entre umas e outras e que muitas vezes não davam em nada. Em nada de bom, pelo menos.

Ao Domingo, vestiam os trapos com  menos remendos. Elas cobriam os cabelos, eles guardavam os bonés que na missa do senhor Padre era preciso respeito. Ali ouviam o que Deus lhes tinha deixado escrito, mas que os seus olhos não conseguiam ler. Cabeça baixa. Mão ao peito. A minha culpa, a culpa que tinham por sua e o corpo de Deus oferecido aos estômagos vazios. Ide em paz.

E o Senhor a acompanhá-los. A fé nele e em Nossa Senhora. As promessas feitas pela saúde dos seus, para que voltassem da guerra que os tinha roubado. Tão novos. Ficaram todos lá. Até quem voltou para os seus.

Comiam o que havia. O pão de quinze dias sabia a fresco e quando faltava lambiam-se as migalhas da gaveta. Comia-se o cheiro a pão quando mais nada sobrava. Fazia-se sopa de água e hortelã e abençoado aquele que tinha meio metro de terreno para plantar e mais meio para criar. Que o dinheiro não dava para tudo e o rol já ia longo. Era a posta de bacalhau mais magra que se tinha encontrado, as 100 gramas de atum enrolado em papel pardo. Os chouriços que se penduravam na chaminé da lareira e que serviam de conduto na sopa que era do que havia.

Falavam a meias palavras quando se encontravam na rua. Sempre a espreitar por cima do ombro para ver quem lá vinha. Era preciso cuidado. Ninguém queria a viuvinha como visita a meio da noite para levar mais um lá para onde fosse que os levavam.

- Cala-te, homem que ainda te levam preso - rogava ela ao marido que ia dizendo aquilo que pensava sem ter autorização para o fazer.

E viviam assim. Um dia atrás do outro numa miséria que lhes roubava tudo. 

- É a nossa cruz - diziam em tom desabafo. Carregavam-na como Jesus o tinha feito antes deles. 

A cruz que era determinada por nascença. Nasciam pobres para assim continuarem. Serviam os que tinham berço. Não conheciam escola. Não almejavam mais porque sabiam que tal não lhes era permitido.

Era o tempo da outra senhora. Uma senhora que não olhava por eles, que os deixara sem nunca os ter conhecido. Que nunca lhes dera a mão. 

- Era uma vida de miséria, era o que era.



Comentários

  1. Gggrrrr até me arrepiou. Muito bem escrito !!

    ResponderEliminar
  2. Olá!!

    Não conhecia o seu blog, mas agora fico a saber de mais uma prima!...

    Saudações minhas!

    ResponderEliminar
  3. Felizmente tudo não passa de negra recordação, porque com todos os defeitos da sociedade atual, um abismo nos separa desse negrume. Belo texto!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares