Betadine e Água Oxigenada

Tinha muitos arranhões e nódoas negras. Demasiados. Se fosse hoje era possível que a competência dos meus pais fosse alvo de dúvida, mas eles não tinham a culpa de ter uma filha arraçada de Tarzan e com constantes ataques de bichos-carpinteiro.

Naquela altura, que eu me lembre, as bicicletas não tinham travões. Pelo menos, eu fingia que não tinham. Só me lembrava deles quando queria fazer uma manobra qualquer. Uma manobra tão espectacular que era provável que acabasse comigo a saltar por cima da bicicleta. Os meus joelhos eram amigos próximos da estrada mal alcatroada. Depois lá ia eu para casa. Bicicleta na mão, lágrima no olho e joelho feito num oito. Estava de volta no dia seguinte. Eu e todos os outros miúdos. Ali ninguém era melhor que ninguém. Fazíamos todos o mesmo. Uns com mais sucesso do que outros.


Tínhamos por hábito subir a árvores e fugir de casa. A última parte é mentira. Tínhamos o hábito de achar que enganávamos alguém quando nos escondíamos num terreno qualquer. Anos mais tarde percebemos que os nossos risos ouviam-se à distância. Nós é que tínhamos tendência para ficar surdos quando nos chamavam para jantar, tomar banho ou dar um beijinho à avó que estava à nossa espera. Muito esperavam as avós naquela altura.

Éramos os donos do nosso mundo. Sempre de cabeça levantada e peito cheio. De joelhos em sangue e cara vermelha de tanto correr. Havia sempre tempo para mais uma corrida. Mesmo quando já era noite escura. Lá íamos nós: rua abaixo e de volta para cima a seguir.

Caíamos todos os dias. Ou quase. Betadine, água oxigenada, penso rápido. Estávamos prontos outra vez.

Ficaram as marcas das quedas e dos curativos. Disfarçadas pelo tempo e cada qual com a sua história. A vez em que só existia o travão da frente ou a outra em que se jurou que o ramo da árvore aguentava.

Acreditávamos que íamos conquistar o mundo. Cabeça cheia de sonhos e sorriso colado na cara. Mesmo quando a água oxigenada ardia nas feridas.




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