O nascer do novo ano

A banda dava sinal de alvorada assim que o dia amanhecia. Ano novo recebido com o bombo a marcar tempo e os músicos, mal protegidos do frio, a marchar rua abaixo e rua acima. Não era tempo de grandes alegrias e muito menos de festejos. Era só mais um mês que começava com o nascer de um novo dia. Mas este tinha direito a música e quando a banda toca há outro alento para o corpo. 

As pessoas apareciam às portas. Roupa de trazer todos os dias que a boa está guardada para os dias do senhor. Palmas a acompanhar as marchas e umas cantigas improvisadas. Os vizinhos que se encontravam à porta e falavam do mesmo de sempre.

- Então e o seu home

- Tá lá praquele lado - diziam elas indicando a direcção com um gesto largo e com o ar de que a pergunta nem se punha.

Juntavam-se una quantos ali no sítio do costume. Só os homens e os miúdos. Todos à roda do tronco que ainda ardia a bom ver. Fazia mais de uma semana que aquele fogo aquecia os corpos e puxava à conversa e à pinga. Alimentado a lenha que se apanhava por aqui e por ali e que aquecia as noites que gelavam os campos. Deixavam o chouriço a assar, o pão cortado com o velho canivete para acompanhar, o toucinho a pingar a gordura para o lume. Os bonés já a inclinar. O corpo a aquecer que o ano amanhece frio e o vinho só dá calor até certo ponto. Falam da vida de língua afiada, mas se lhes perguntarem dizem que só as mulheres é que falam assim. Pudera, os homens são sempre homens.

As mulheres estão recolhidas em casa com os miúdos de mama agarrados às saias e as miúdas agarradas ao trabalho que é de novas que aprendem. Há lá tempo para brincadeiras. Nem se sabe bem o que isso. Nem bonecas se encontram, quanto mais. É saber onde está o sabão e andar de olho vivo nos irmãos. 

O novo dia é só mais um dia. Em casa que o tempo não deixa ir para o campo. Que se ouça uma modinha que pelo menos isso anima e o corpo balança a tentar acompanhar o ritmo. Discreto que não se quer falatório.

Lá veio mais um ano. Se não for melhor, que pelo menos seja igual ao que passou que a esse, e às suas manhas, já há quem conheça. 

Venha o novo ano. Dias iguais a todos os outros, trabalho a moer o corpo e as preocupações a moer a cabeça. Que se bata umas palmas quando passa a banda, sempre alivia as cruzes que se carregam.

Comentários

  1. Mais uma bela recordação do passado que de bela é só pela escrita da Vânia Calado, porque ainda bem que essas actitudes de homens para o fácil e as mulheres para o trabalho já lá vai.
    Isto só para dizer que gostei mais uma vez da ler.

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