O fim do suplício

Rodou a chave na fechadura e entrou em casa. Lá dentro, a filha, quase mulher, olhou-a com espanto. Não eram horas de voltar a casa. Vendo bem o relógio, nem eram horas de abrir as portas ao trabalho. 

Viviam sozinhas. O marido que nunca chegara a ser, tinha a mão pesada e o mau feitio que ela teimava em desculpar com o álcool. Perdera-se com os olhos verdes e a altura que lhe dava sombra e, sem consentimento do santo padre, ficara ao seu lado, num quarto com serventia de tudo o resto. Ela sabia que, mesmo sem aliança, era melhor ter um homem em casa do que ser uma mulher a viver sozinha com uma filha ao seu cuidado. Era por isso que tinha aguentado tanto tempo. Até que a mão pesada caiu na filha e não nela. Não foi preciso mais. Nesse mesmo dia, arrumou as malas com o nada que era seu e saiu porta fora com a miúda a tropeçar nos próprios pés. Nunca pensou em voltar e ele nunca a procurou. Tal como todos os outros, achava que se nunca se tinham casado ela não merecia qualquer tipo de respeito. Era certo e sabido que esse direito só estava reservado a quem subia ao altar. Se assim não fosse que se mantivessem debaixo do tecto dos pais. 

Desde miúda que conhecia qual era o seu lugar. Sabia que as mulheres tinham todas direito ao mesmo destino e ela, com uma filha nos braços, fugira ao seu quando fechara a porta de casa nas suas costas e deixara o seu homem do lado de dentro. Uma mulher não fazia isso. Uma mulher a sério, precisava do homem. Pouco importava o inferno a que a sua vida estava confinada. Se ali a viam assim, nem queria imaginar o que lhe teria acontecido se tivesse ficado a viver na aldeia que a vira nascer. Onde todos se conheciam e ninguém tinha pudor em apontar o dedo ao vizinho. 

- Há uma revolução - disse quando viu a pergunta a formar-se nos lábios na filha. 

Não lhe deu tempo para responder nem se preocupou em saber se a miúda percebia o que a palavra queria dizer. Agarrou-a por um braço e levou-a para a rua, ignorando as ordens para ficar em casa. A partir daquele dia, ninguém lhe diria o que fazer ou como o fazer. 

- Vamos para o meio dos militares. Hoje, acaba o nosso suplício.

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