Quando a caça enchia a mesa

Era tempo dele. De se ouvir os tiros a ecoar pelos campos sem se saber bem de onde chegava. Dos homens sairem cedo e das mulheres os esperarem no trabalho de todos os dias. Era tempo da carne entrar em casa sem se contar os trocos que ficavam em falta.

Quando as espingardas se calavam, lá faziam o caminho de volta. O cão, um rafeiro que chegava de língua de fora que só recolhia quando baixava o focinho para cheirar o chão, vinha à frente a anunciar o retorno. O dono, de botins feitos lama e boné na mão enquanto limpava o suor da cara, vermelha, seguia-o. Em silêncio e de espingarda no braço. No cinto, os cartuchos chocalhavam a cada passo. 

Alertada pelo som que se aproximava acompanhado do ranger do portão improvisado, a mulher espera-o para receber o resultado da manhã de caça. Uma mão na cintura e outra na parede do barracão que lhe serve de cozinha. Sem falar, como sempre, agarra nos coelhos que o marido lhe estende e leva-os consigo deixando-o sozinho a desvencilhar-se da lama e tralha que carrega. 

De mangas arregaçadas, ela faz-se ao trabalho. Uma precisão cirúrgica, própria de quem quase nasceu a fazer aquilo. Desfaz-se da pele do animal e com as mãos nuas descobre os chumbos que lhe ditaram a sentença naquela manhã. O cabelo protegido por um qualquer pano que se aproveitou de uma camisa velha e as mãos a descobrir aquilo que a escuridão da cozinha não deixa que os olhos vejam.

Desfeito de miudezas e do pouco que não se aproveita, o que resta do coelho é preparado para a ceia. Panela ao lume e sangue a aguardar para dar cor ao arroz. Cor e sabor próprio de carne alimentada no campo. O cheiro a subir com o calor da comida a borbulhar e o garrafão do marido a esvaziar como remédio para a canseira. 

A caça traz para a mesa a carne que o dinheiro não consegue comprar. O coelho feito à caçador ou tostado no mesmo forno onde cresce o pão. O pombo transformado em canja que enche a barriga dos mais novos. As barrigas confortadas com a carne brava que não conheceu gaiolas. 

Uma noite de fartura para os estômagos tão habituados a não ter nada que já nem reclamam. É o tempo em que se ouve os tiros pelos campos.

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