Minha terra é Vale da Pinta

É um viver que só conhece quem de lá vem. Um saber que passa de boca em boca, de mão em mão, sem cartilha que o explique ou lhe dê regras. É o que é, sem mais. Corre no sangue de quem deu os primeiros passos por aqui. De quem baldeou no lago da igreja e transformou a roupa de Domingo numa rodilha a precisar de ser espremida. De quem fugiu da maquia que lhe prometiam. 

Sabemos todos o mesmo. Sentimos o mesmo. Falamos um português que soa ao que o país fala, mas que só nós o percebemos. É a pronúncia que aparece quando os nervos tomam conta de nós, são as palavras que só têm significado para quem cresceu com elas. 

Cantamos esta terra que nos corre nas veias e gritamos que é nossa enquanto esperamos que as pétalas comecem a cair em cima do público. A nossa linda freguesia. Mais que todas as outras mesmo que seja só aos nossos olhos. 

Lembramos os saudosos tempos em que os caracóis eram servidos à mesa da taberna do Valentim e que os mais novos vinham do Zé d'Azoia com um cartucho de beijinhos escolhidos à mão. Aquele açúcar colorido que tinha sabor a inocência. A mesma inocência com que batiam à porta de um e de outro e desapareciam antes que se ouvissem passos do lado de lá. A porta abria para encher a rua vazia com o cheiro a refogado de alho e louro e só se ouviam os passos que fugiam ao longe. 

É assim que vai passando o tempo, quando damos por ele já perdemos a conta aos anos. Envelhecem os que dançaram na casa das canas sem ligar a quem sonhava de noite para dizer de dia. Aguentam-se os que ainda se fazem ao trabalho quando se ouve a pergunta que o tempo tornou ordem: "Toca a muca ou não toca a muca?". Ouvem-se os insultos quando o árbitro não está pelos nossos, os que sabemos que vão ganhar. Ficam as histórias vividas por uns que se tornam de todos com o passar de boca em boca. 

Pode chegar o dia em que seja só eu, tu e o Zé d'Azoia, ou que as estradas fiquem vazias, mas esta história será sempre nossa. Do orgulho que nos enche o peito e que se faz ouvir quando nos perguntam de onde somos. Do cumprimento que se dirige aos que nos viram crescer. 

- Ó gente de Vale da Pinta.

Comentários

  1. Gostei muito do texto.
    Suponho que é Vale de Pinta, Cartaxo, também há um no Algarve...
    Tenho pena de não conhecer essa região.
    Saudações outonais.
    ~~~~

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    1. Obrigada. :)
      Sim, este texto é sobre Vale da Pinta no concelho do Cartaxo. Sei que também há uma no Algarve, mas não conheço. :)

      Beijinhos

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  2. Nasci na Lapa e moro no Cartaxo, Vale da Pinta fica no caminho e passo lá muitas vezes. Mas por falar em tempos que já lá vão recordo-me de em miúda não perceber muito bem uma expressão que as mães das meninas usavam entre elas: "Então, a tua filha já passou a Vale da Pinta?" Só mais tarde vim a perceber que isso significava perguntar se as miúdas já eram menstruadas :-)

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    1. Sou de Vale da Pinta e não conhecia essa expressão. Obrigada pela partilha :)

      Beijinhos

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  3. É tão bom ter essa identidade e amor pela terra... eu tenho!

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