O trabalho dos dois

Fazia pouco tempo que o dia tinha amanhecido. Vinha com uma cor baça e escura que tardava em clarear e dar calor ao dia que se adivinhava cinzento e húmido. O ranger das dobradiças do portão feito de restos de madeira ecoou na rua vazia de pessoas e de casas. De um lado a vista só alcança o verde rasteiro dos campos. Do outro acompanha a rua de pó que acaba nas casas baixas e brancas da vila. 

Sem que a idade tolde a destreza que a experiência lhe deu, começa o mesmo trabalho de sempre. As mãos gretadas perdidas em gestos mais harmoniosos do que mecânicos enquanto o leite enche o balde preto que ele segura entre os pés e lhe aquece as pernas. 

Encostada à ombreira da porta, de casaco de malha grossa pelos ombros e apertado junto ao pescoço, ela espera-o. Recebe o balde e vira-lhe as costas sem mais falas pronta a fazer-se ao trabalho. Leite despejado no pano branco que tapa a panela e a paciência de o ver coar. Gota por gota. A cadência a preencher o silêncio. O aumentar do gotejar quando ela torce o pano para aproveitar a última gota. Deixa-o ferver até o cheiro da gordura da nata invadir a casa e a entranhar-se no chão de cimento e nos móveis que já tinham tido outros donos quando ali chegaram. De corpo já curvado, pela idade e pelo hábito do trabalho, dá a volta ao leite e prova-o com o gosto que só tem quem sabe. 

Quando chega a altura, deita a água cor de terra que vem do cardo e fica a ver o leite a ganhar corpo. Enquanto espera, puxa as mangas pesadas e prende-as nos cotovelos com os elásticos que traz sempre no pulso. Fala consigo mesma enquanto repete os passos de outros dias até que o lume termine o seu trabalho. Nessa altura, sem ajuda, o corpo pequeno vira a panela que parece que o vai engolir e deita aquela papa no velho tabuleiro de madeira revestido a linho. E ali fica ela, sentada, a envolvê-lo no pano, a apertá-lo, tendo por companhia o som da água que escorre do tabuleiro para os alguidares que ali estão. O som que já lhe soa a silêncio. 

Ajeita-se no pequeno banco e prepara as mãos para dar forma aos queijos que esperam a cura. Ela metida no trabalho que sempre fez naquela casa onde também dorme e come. Toda a sua vida ali. A dela e dele. Ele que naquela idade ainda sai de manhã para lhe ir buscar o leite. Ela que de corpo curvado faz do trabalho os seus dias. Ele que ao final do dia volta a sair de balde vazio. Ela que o espera. Os queijos que levam o sabor que só o tempo lhes dá.

Comentários

  1. Um belíssimo momento de leitura numa realidade que tende a desaparecer!!! Bj

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  2. Este texto é lindíssimo, mais um!
    Até me parece sentir o cheiro
    Beijinhos

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  3. Gostei muito Vânia... senti o cheiro e sabor do leite cru que só provei uma vez.
    O meu blogue é temático e fala sobre arte, de modo simples.
    Se quiser ver coloque no buscador do google...
    a vivenciar a vida bloguespot majo dutra
    Abraço
    ~~~

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