Pão, por Deus

Era certo e sabido que o início do mês era anunciado pelas vozes nas ruas acompanhadas dos risos que só pertenciam a quem ainda tinha idade para os dar sem ser repreendido por não se saber comportar. Da rua chegava o cheiro a chuva e a humidade entrava pelo nariz colando-se aos pulmões e obrigando as velhas a aconchegar o xaile de lã e os velhos a deitar abaixo um copo de três. 

Encostadas ao canto da janela, meio escondidas à vista de toda gente, elas espreitavam só com um olho por detrás da cortina branca. E lá viam os mais novos chegar com as bochechas vermelhas e pele a brilhar. Corriam rua acima, a tropeçar nuns e a empurrar outros, todos na ânsia de ser o primeiro a chegar. 

- Bolinho para o santinho - vinham com a lenga lenga debaixo da língua, ensinada pelos que antes deles fizeram o mesmo, e ficavam com o saco de remendos aberto à frente de quem abria a porta. À espera. 

- Esta casa cheira a broa. Aqui mora gente boa - a pobreza que os recebia dava-lhes o que tinha. 

As broas cozidas no dia anterior que se desfaziam em migalhas no fundo do saco. As romãs gordas apanhadas da árvore que era de todos. Dois tostões quando os havia. Uma mão cheia de castanhas. Se tivessem sorte, lá aparecia um rebuçado daqueles que se colavam ao dentes e demoravam descolar. 

Sem mostrar cansaço nem intenção de abrandar, os miúdos continuavam o caminho das casas com pouco mais de metro e meio de altura, com o saco a ganhar peso. Só acalmavam quando batiam à porta da casa grande. Aí, cumpriam o que já sabiam. 

Abriam-lhes a porta e eles entravam na sala onde a devoção era parte presente e esperavam. Sacos fechados, cabeça para baixo e o cheiro a eucalipto a acompanhar a reza que murmuravam. Os senhores no seu porte direito, cruz ao peito e roupa sem remendos, esperavam pelo Amen final para retribuir com o pão que lhes pediam antes de os mandar embora com uma benção mal amanhada. 

Todos os anos. A mesma ronda. De ano para ano os miúdos a transformarem-se nas velhas atrás das janelas, os mais novos a trautear a mesma cantiga. O início de Novembro, quando o frio entrava nos ossos sem que a braseira fosse capaz de os aquecer, a ser recebido com os sacos abertos. Algumas portas que só tinham mãos fechadas. 

- Esta casa cheira unto. Aqui vive algum defunto - e a palavra a passar de boca em boca a marcar os que não davam a quem pedia pão. 

- Pão, por Deus.

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