De estômago cheio

O quarto de meia dúzia de metros engolia-a naquele cheiro quente a feijoca fervida logo pela manhã. Ainda o dia não tinha amanhecido e aquele cheiro já entrava pelas narinas e a deixava de estômago às voltas. Adivinhava a panela a borbulhar ao lume com a quarta leva da semana para o mesmo comer de todos os dias. Pelo menos era assim que lhe parecia. Era assim porque o que havia era pouco e esse pouco tinha de dar para muito. E para muitos. 

Ela, ainda deitada numa cama que não conhecia lençóis dignos de tal nome, já pensava na melhor maneira de se escapar a mais um almoço de sopa de couves e um bocado de carne que nem dava para contar história. A mesma de todas as outras vezes que se escapava como quem não quer a coisa.

Não é preciso ter meios, por muito importantes que sejam nada supera o engenho de quem tem de se fazer à vida de bolsos vazios. E ela, esperta que nem um alho (como o pai repetia sempre que a apanhava com o pé em ramo verde), sabia bem a que engenho recorrer. 

Agrião que nasce à beira da estrada é de todos, mesmo que alguém esteja de olho nele para o vender por uns quantos escudos. É de quem lhe deitar a mão. 

No alguidar lá de casa, as azeitonas já vão na terceira escaldadela e são tantas que ninguém sabe se já tiraram umas quantas. Tirando a mãe, que sabe até o que ainda não aconteceu. 

E depois, nada como bater à porta da tia. Aquela que tem sempre lugar para um à mesa e umas galinhas lá ao fundo do terreno, galinhas daquelas que dão ovos todos os dias. Tiram-se dois. Mexidos numa frigideira torta e preta do fogo. 

Não há sopa de feijoca nem couve e muito menos uma rodela magra de chouriço gordo. Há pão e ovo frito em azeite com agrião e azeitonas. De estômago cheio. 

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