O cheiro das ruas

Eram outros tempos. Aqueles dias em que o sol do meio-dia iluminava a rua com uma luz tão clara que obrigava a fechar os olhos. 

A rua tinha o alcatrão em mau estado, o que não se possa dizer que seja muito diferente dos tempos de agora, e só duas ou três casas é que tinham um primeiro andar. Todas tinham um quintal com direito a um barracão com a cozinha onde comia a família. A cozinha de casa era para as visitas. 

Ao meio-dia, a rua começava a ganhar vida mesmo que não se visse uma pessoa que fosse. 

Vindo dos quintais, ouvia-se o som do garfo a raspar na velha frigideira gasta de tanto ser areada. A telefonia tocava um fadinho ou outro, daqueles que faziam chorar as pedras da calçada, e as mulheres de lenço à cabeça e bata vestida, faziam o almoço para os netos que vinham da escola, os filhos que almoçavam ali ou os homens que vinham do trabalho. 

Cheirava a refogado com azeite feito no lagar lá da terra, com as azeitonas que a família inteira tinha apanhado. A cebola a ficar translúcida e o toque do alho e do louro. 

- Não comas o louro que te rasga a garganta! 

O borbulhar do óleo quente. As batatas cortadas em palitos e metidas dentro de água, à espera. A carne cozinhada com tempo e com uma perícia que nasce com a pessoa. É preciso ter mão para a cozinha. Ainda não há chefs, só cozinheiras. 

A feijoca a cozer para a sopa, com o toque dos enchidos e da carne de uma qualidade que já não se encontra. Um cheiro rico e gordo, guloso. 

Uma rotina cumprida em todas as casas. Um cheiro que enche a rua vazia e que anuncia a chegada do resto da família para se sentarem à mesa, com o pão ao lado para raspar o fundo da frigideira antes de voltar a ser areada. 

As memórias fogem com o tempo. As caras ficam confusas e perdem-se nomes, mas o cheiro a refogado a invadir uma rua vazia vai sempre levar ao sol do meio-dia numa rua de alcatrão esburacado onde se espera que a família chegue para almoçar.

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