Pés descalços

O chão era duro, mas os pés estavam habituados. Já não se arrepiavam com o frio nem sentiam o calor queimar. As solas dos pés não estranhavam os buracos e o chão irregular nem as pedras que iam aparecendo.

Era assim que as coisas eram. Andava-se descalço porque não havia dinheiro para comprar sapatos e mesmo se houvesse algum que sobrasse das contas que se faziam era mais importante guardar para a comida ou para ir ao médico. Os sapatos podiam esperar. E esperavam.

Faziam quilómetros com os pés nus metidos no pó da estrada. As silvas a furar a sola do pé. Dura e sem sensibilidade. Nunca tinham experimentados uns sapatos. Viam as senhoras ou alguma prima mais folgada a usá-los, mas na sua casa não havia espaço para esse luxo. Outras prioridades.

E cresciam de pés descalços. Os pés que os levavam a todo o lado e que percorriam estrada e mais estrada sem denunciar o cansaço.

- Vamos à cidade? - dizia uma em tom de convite. Era a feira, aquela que faziam todos os anos e que juntava os arredores e mais uns quantos.

- Sei lá, nem tenho sapatos.

E então uma prima emprestava uns que tinha lá por casa. Já gastos e usados, mas que serviam a sua função. Eram um número acima do seu. Chinelavam. Magoavam os pés habituados a andar à solta. Mas lá iam elas, orgulhosas dos seus pés tapados num desconforto que não conheciam.

Quando compravam o primeiro par era uma festa. Eram caros. Ganhavam cem escudos a servir na casa das senhoras. Eram as primeiras a acordar e as últimas a deitar para ganhar aquilo. Se comprassem uns sapatos ficavam logo sem dinheiro. Era preciso saber esperar. Poupar os trocados que sobravam dos gastos do mês. Esperar que dessem para um par de sapatos como as senhoras usavam.

Já eram quase mulheres quando os compravam. Crescidas e de corpo feito. Mulheres de trabalho de sol e sol e mãos calejadas. Compravam os sapatos que eram o seu número. Gastavam os cem escudos que tanto lhes tinha custado juntar.

Caminhavam sem que se ouvisse o chinelar, mas o desconforto continuava a fazer-lhes companhia. Lá iam elas, com o som do salto no chão a marcar o passo. A bolha a começar a aparecer no calcanhar.

Chegavam a casa e tiravam os sapatos. Ainda mal tinham passado a porta e já iam de pés no chão e sapatos na mão. Guardavam-nos a um canto, com cuidado. Quem pouco tem sabe o quanto vale. E lá iam elas descalças pela casa e pelo terreno, tratar da vida. Sempre de pés descalços. Os sapatos ficavam para a rua e para as cerimónias. Para o Domingo e dias santos. 

Para o resto dos dias, para a vida de sempre, os pés podiam andar como sempre andaram. Descalços.

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