O que a vida ensina

"Não sei o que isso quer dizer. Se letrado é ter lido muitos livros isso não é cultura. Cultura é o que nós fazemos. Olhe, sabe, uma vez o Agostinho da Silva a seguir ao 25 de Abril convidaram-no para presidir à comissão contra o analfabetismo. Ele dizia "Meu filho, eu estou tão preocupado porque a maior parte das pessoas cultas que eu conheço são analfabetas". Por exemplo, saber fazer pasteis de bacalhau é uma forma de cultura tão importante como escrever um livro. "
António Lobo Antunes, in Jornal das 9
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Ela não tinha nada a oferecer. "Oh avó, tu não sabes nada", diziam-lhe os netos quando ela ficava espantada com a vida que eles levavam. Tentavam ser simpáticos. Uma festa no braço a acompanhar a observação, o compôr da manta que lhe aquecia as pernas. As palavras que lhe ficavam. “Não sabes nada”. 

Era verdade. A vida não lhe tinha dado nada que valesse a pena. Não se escreviam histórias sobre os seus dias, as suas lutas não tinham memória. Só lhe tinha calhado em sorte o trabalho, a casa, o marido, os filhos. Paridos e criados naquelas paredes que mal davam para dois, mas que tinham recebido seis. Dois deles perdidos quando ainda nem tinham aprendido a andar. Voltou a viver deixando parte de si enterrada naquele terreno de campas e flores murchas. Aprendera a suportar uma dor que não tinha sentido, que não era normal. Mas fizera os seus dias. Uns a seguir aos outros com uma cruz que lhe pesava a cada passo. Mas disso não falava. 

Os netos deixavam-lhe as frases caladas na garganta. As histórias que queria contar para quem não a ouvia. “Talvez tenham razão”, pensava ela, “ O que é que uma velha como eu, que mal sabe ler e que nunca viu nada para além do mar, tem para oferecer?” 

Esfregava as mãos. A pele marcada com rugas e calos, o resultado de uma vida de trabalho. As mesmas que amassavam o pão até ficar no ponto. Sem receitas nem medidas. A olho, a sentir. A textura, a humidade. O ar do forno a dar sinal de estar pronto para o pão. A intuição de quem faz aquilo desde que nasceu. 

Sabia qual o tempero dos fritos de Natal só de os cheirar. Se era preciso mais laranja ou se estavam a cortar no abafado. Os seus braços tinham uma força que não cabia no seu meio metro de altura. As estações anunciavam-se sem alarido. A mudança da cor do céu ao entardecer, o vento que soprava mais seco. A época de plantar para depois colher. Nunca lera um livro. A escola tinha terminado na terceira classe com uma enxada na mão. Para que é que ia perder tempo a ler quando o dinheiro faltava em casa. Sabia escrever o seu nome numa letra que já nem se usava. Nada mais. 

Não conhecia o mesmo que os netos. Nem que os filhos. Esses que tinham estudado fora com o trabalho daquelas mãos. Olhava-os com orgulho e com um quê de incredulidade ao ver neles tão pouco dela. Da sua história. Aqueles que eram parte de si, nunca saberiam contar qual tinha sido a sua vida. Não iriam entender o porquê de mal ler, de falar para si quando estava sozinha e se lembrava das angústias que a vida lhe tinha dado. 

Mas talvez eles tivessem razão e ela não soubesse nada. Talvez aquilo que a vida lhe tinha ensinado com os dias iguais, com o que lhe tinha roubado e com o que lhe tinha dado, não fosse nada além de banal. 

Mas, agora que olhava pela janela, sabia que amanhã ia chover e que os netos nunca iriam perceber como é que ela acertava sempre nestas coisas.

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