Nada se perde

- Dê-me um chouriço, uma chouriça e mais um bocadinho de toucinho entremeado.

Estava arranjado o conduto para a noite e para os dias que se seguiam. Ele tratava do avio pedido e deixava-o em cima do papel pardo onde fazia as contas de noves fora antes de embrulhar a carne. Ela pagava quando podia, arrumava o embrulho na cesta e metia-a à cabeça. Pés a fazerem-se ao caminho e lá ia ela que a vida não espera. 

Em casa, passava a carne por água e metia-a na panela para dar sabor à sopa de todas as refeições. O papel pardo era arrumado lá no canto que ainda estava bom para escorrer os fritos que seriam feitos daqui a uns tempos. 

Nada se perdia naquelas mãos. O bacalhau vinha embrulhado nas folhas de jornal e, por muita água que levasse, nada lhe tirava o sabor a notícias antigas. 

- É tempero - dizia o homem em tom de graçola para quem se queixava do sabor seco que aquelas postas deixavam na boca. 

Eles comiam, calavam e lá guardavam as folhas que tingiam as mãos e que, depois de bem esticadinhas, embrulhavam o tacho onde se guardava o almoço. A comida quer-se quente e são duas camadas de jornal e mais um pano que a deixam assim. 

Já se nasce a saber de economia sem nunca se chegar a reconhecer as letras. Os ricos só o são porque sabem que só tem dinheiro quem o poupa. Se eles, que têm tanto que lhe perdem a conta, o fazem, porque é que nós, que andamos de pés descalços, não o vamos fazer? 

A sardinha dá para três quando assim tem de ser e um saco de plástico, depois de lavado e seco, leva mais umas quantas viagens. Isso e a camisa. Já virou o colarinho e não tem tecido para remendar, mas cortada em bocados dá pano que limpa melhor do que os novos. Se o tecido o merecer, ainda leva uma renda à volta para embelezar. 

É fazer milagres quando nem se sabe se Deus está a olhar por nós.

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