Ouvi dizer que

As conversas perdem-se. No café e na rua, na esquina da casa ou no quintal quando a vizinha passa para dizer olá. Fala-se do que se sabe e do que se imagina. Diz-se que há quem sonhe de noite e que conte de dia. Seja ou  não verdade, seja assim mesmo ou só aproximado.

- Ouvi dizer que...

Mas será que ouviu mesmo ou acha que ouviu e fala só porque não quer estar calada? Afinal, o silêncio é sempre dificil de lidar e há sempre mais qualquer coisa a dizer. Se não houver, é arranjar.

- Já viste aquele que...

Viu sim senhor e até tem opinião formada sobre aquilo que não chegou a ver. É assim que se fazem as coisas.  Conta-se o que se ouviu da boca de alguém que sabia tanto como nós e acrescenta-se uma opinião feita de preconceitos.

Espreita-se pela janela da casa e aproveita-se que o cortinado ficou mal fechado para espreitar para a privacidade que não nos pertence. 

-Sabias que tem o quarto com...

Não se imagina, mas fica para ouvir que enquanto falam dos outros pode ser que se esqueçam de nós. Fala-se com sussurros e a espreitar por cima do ombro, não vá estar alguém a  ouvir. Braços cruzados no peito, cabeça descaída e lábios junto ao ouvido. 

- Aquilo é uma vergonha...

É sempre. É o vizinho que não tem o carro no sítio do costume quando já passou a hora de estar em casa, são os outros que gritavam uns com os outros, é aquela que abriu a porta aquele.

- Aquilo não anda nada bem...

Naquelas bocas nunca andou. Para aquelas bocas tudo o que se passou atrás daquelas portas foi sempre uma desgraça.

- Ainda no outro dia a encontrei...

E é quase certo que fazia tudo errado: falava com homens que não eram seus, aliviava luto antes de tempo ou corria sem pudores quando toda gente sabe que há coisas que não ficam bem.

- Está tão magra...

O certo é ter alguma doença que nem imagina que existe. Deus nos livre que esteja magra só por estar ou que engorde sem estar desmazelada. Há coisas que são para cumprir e na língua de quem fala à socapa é tudo como se acha que é. A verdade perdeu-se sem que a sua existência chegasse a ser importante.

- Quem é?

Filha de X, casada com Y, viveu para lá do sol posto e sem filhos. Um sem fim de referências até que algo sirva de identificação.

São as conversas que nascem nas cabeças, que crescem nas ruas, que saltam de boca em boca e que pelo caminho perdem a verdade que nem chegaram a ter.

Espreita-se a vida alheia, fala-se de boca cheia e esconde-se a vida própria que ninguém quer que as suas amarguras andem por aí espalhadas nas conversas de uns e de outros.


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