Quando o mundo chegava a casa
Chegou a casa resvés com a hora de jantar. Antes que a mãe percebesse que já ali estava, esgueirou-se para o cubículo que lhe servia de quarto e guardou os livros debaixo do colchão. Trazia-os escondidos na camisola. Uma solução tão prática quanto discreta.
Apressou-se a arrumar o tesouro que era só seu durante aquele mês e sentou-se à mesa como todos os dias, mas com a inquietação a massacrar-lhe as pernas. O pouco jantar engolido à pressa para se recolher no quarto o mais cedo possível. Todos os meses a mesma história no dia em que a carrinha parava na praça da aldeia. A excitação das portas que se abriam, o coração apertado por não poder dedicar todo o seu tempo ao mundo que se escondia naquelas páginas.
Depois de dar o jantar por terminado e quando os pais já dormiam o sono dos justos, lia às escondidas. Lá por casa os livros não eram tidos em boa conta, era por isso que aproveitava a calma da noite para gastar as velas que surripiava da gaveta da cozinha. A mãe, quando encontrava tais preparos, ainda olhava para o lado algumas vezes, achando que aquilo era mania que lhe passava, mas de vez em quando perdia o temperamento. Levantava a voz e dava-lhe uns safanões para que levantasse a cabeça do meio daquelas páginas e encarasse a vida que se queria. Mandriagem naquela casa é que ela não permitia. O corpo era para trabalhar e nunca se tinha visto trabalho que viesse de cabeças que sonhavam com o que não era seu.
Nessas horas de fúria só podia rezar para que os livros escapassem às mãos que levavam tudo à frente. Nos piores dias, quando a raiva lhe deixava as faces em brasa, as folhas ficavam espalhadas pelo chão do quarto. Sem se saber onde começava e onde acabava a história e sem capa que lhe desse alguma cor.
“Não percebem”, era o dizia para si enquanto apanhava as folhas e fazia o livro. De novo. A esconder os remendos que o deixavam inteiro e a esperar que o revisor deixasse passar. Até podia ser que nem reparasse que o livro não voltava da mesma maneira que tinha ido. Só não podia voltar de mãos vazias para casa. Nem queria que assim fosse.
Na continuação do texto "Quando o mundo chegava" publicado em Fevereiro de 2018
Uma bela prosa num bom momento de leitura!!!bj
ResponderEliminarObrigada :) Beijinhos
EliminarUma bela prosa num bom momento de leitura!!!bj
ResponderEliminarComeço a confundir-me! Será que gosto mais deste, ou do outro?
ResponderEliminarVânia, o melhor mesmo é não resistir e entregar todas essas coisas de lá pela sua terra na tipografia. O cheiro do papel encadernado é mesmo bom, acredite.
Enquanto não tenho mais notícias, fica mais um beijo
Muito obrigada :) quem sabe se um dia estes textos visitam a tipografia, vamos ver :)
Eliminarum beijinho muito grande
Gostei muito Vânia =)
ResponderEliminarBeijinhos,
https://chicana.blogs.sapo.pt/
Obrigada :) Beijinhos
EliminarEste texto fez-me lembrar um dos primeiros livros do Afonso Cruz (não me lembro do nome). :)
ResponderEliminarUm dos autores que quero muito ler, mas primeiro tenho de terminar os livros que tenho na mesa de cabeceira :) Beijinhos
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