Como Ele fez por nós
"Sou da aldeia da Luz
A que vai ser alagada
Calhou-nos esta cruz
Mas uma cruz tão pesada."
João Chilrito Farias, poeta popular
Pára antes de passar o portão. Pousa o balde e, em silêncio, faz o sinal da cruz enquanto murmura as palavras que o acompanham. A bata escura cobre-lhe a perna até meio do joelho e a camisa de manga comprida só lhe deixa a cara à vista. Tem a pele marcada pelo tempo, a força escapa às pernas.
Em silêncio e de olhos fixos no chão, entra no cemitério e faz-se ao trabalho. Prepara a cal no balde, varre a campa e leva o seu tempo a pintá-la de branco enquanto fala com os fantasmas que a acompanham e que ali pensavam ter o descanso eterno. É trabalho deitado ao vento porque não falta muito para levarem os seus dali. Para a nova morada que não conheceram.
São eles e ela que dali vão. Que deixam aquela terra. As pedras da calçada conhecem-lhe os passos, os tijolos improvisam degraus onde se sentam as vizinhas, os muros não lhe tiram a vista para os campos sem fim. Tudo seu sem o ser. Fazem parte de si como aquele sangue que lhe corre nas veias.
Tem amizade à casa que antes de ser sua era dos seus pais. Das paredes que lhe ouviram os gritos quando nasceram os filhos e quando a vida lhe levou os que a puseram naquele mundo. Tudo aquilo pode ser menos do que o que têm para lhe dar, mas é o pouco que lhe pertence. A lareira grande que não a espera na nova casa nem o balcão para arranjar o porco. Só os quartos todos com direito a janela. Ali, só um é que a tem. Mas é aquela que ela penou para ter. Assim como lhe saiu do corpo a casa que ergueu para o filho a dois passos daquela.
Enquanto varre a casa já vazia de móveis, mas cheia de memórias que se colam a cada canto, lembra-se das palavras do padre. As que ele lhe disse quando em confissão lhe falou do medo de ir embora e que voltou a repetir quando a procissão levou os santos para a nova igreja.
- É o sacrifício em nome dos portugueses tal como Deus sacrificou o seu filho pelos homens.
Benzeu-se antes de trancar a porta que não se voltará a abrir. Com a ponta da bata escura limpou as lágrimas que teimavam em cair. Partiu para o que lhe diziam ser melhor, mas sabia que parte de si ficava ali. Debaixo de água. Prometeu a si mesma que não voltaria a olhar naquela direcção nem a encarar o rio. Aquele seria sempre o maldito que lhe levara a vida e a deixara viva.
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Em 2002, a antiga aldeia da Luz ficou submersa e a sua população passou para a nova aldeia da Luz erguida a três quilómetros da antiga. Nessa altura tinha 423 habitantes. Em 2012, eram 297.
Partiu_se muito coração!! Bj
ResponderEliminarQuando estive na Aldeia da Luz e vi o documentário e a estrada a terminar no rio também senti o coração apertado. Beijinhos
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