A nossa aldeia

Cheira a carne. Feita no forno depois de marinar em vinho e temperada a pimentão doce e louro. Sabemos quem a faz, conhecemos quem mora atrás de cada porta e sabemos onde vão dar as ruas e que outras cortam para o mesmo sítio. Que para ir do ponto A para o ponto B passamos pela casa daquela que é irmã do outro, primo daquele tal que encontrámos no outro dia. E, já que falamos nisso: “que bem que a mãe dela fazia arroz-doce, até parecia o dos casamentos”.


Conversamos com quem encontramos, pagamos um café gelado ao que acabou de entrar e ficamos só mais um bocado. A ver o jogo, a conversar, a fazer companhia. E dizem lá de fora “as ruas desta aldeia não são para viver”, mas os de cá sabem que são as mesmas ruas que recebem quem faz delas a sua morada. As casas que ficam à sua sorte porque há quem diga que são pouco utilizadas, estendem os braços aos que viram crescer e a quem decide continuar a sua vida ali. Mais tarde ou mais cedo todos se conhecem pelo nome, apelido, alcunha e grau familiar. Ali, todos têm rosto, história, são alguém. Ninguém é só mais um.

A nossa aldeia fica longe das estradas cheias de carros e as que tem como suas estão cheias de buracos. Segundo nos dizem, virá o tapete novo quando houver oportunidade. Um dia. E nos entretantos, nós, que passamos ali todos os dias, já os conhecemos de cor. Tal como conhecemos as casas que foram erguidas pelos daqui, para que fossem de todos, e que agora ganham ervas e postes partidos. Ouvimos dizer que “vai ficar assim” porque “ninguém por ali anda”. Mas nós, que ali vivemos, que dali somos, ouvimos o riso dos miúdos enquanto andam aos pontapés na bola e aos encontrões uns nos outros. Ouvimos os pais a gritar "Tu vai, mas tem cuidado", não vá a bola cair lá para aquele lado de onde vem o cheiro que nos faz torcer o nariz porque é certo que não é de coscurão como a vizinha fazia.

Dizem que ali nada é utilizado, como se os nossos dias fossem passados à espera que a morte nos encontre. Como eles sabem pouco. Quem ali vive, sabe que o corpo puxa-nos para aquela terra, que nos chama a fazer mais. Um sentimento de pertença, de reconhecimento pelo que foi feito por quem veio antes, a vontade de fazer pelos que vão chegar. O coração bate e sempre se vai bater pelas ruas que dizem estar vazias. Se eles soubessem. É preciso passar por elas, vivê-las, todos os dias, todos os meses, para saber que ali se vive. Que ali, é a nossa aldeia. A nossa casa.


Versão completa do texto publicado na Revista Dada de Agosto de 2019

Comentários

  1. A minha terra cheira a chouriças caseiras, a café da máquina de moer e a tostas mistas feitas com um aparelho muito rudimentar - consistia numa forma de ferro, com umas pegas compridas, aquecendo a forma ao lume. :D

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Conheço esse aparelho, mas usava-o para fazer torradas :)

      Beijinhos

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares