Janeiro

A roupa era a de todo o ano. Um casaco de malha no Inverno, mangas de camisa no Verão e mais nada. Dizia-se que o corpo já estava habituado, rijo do frio, mas a verdade é que lhe parecia que o sangue parava de correr nos meses mais frios. A geada cortava-lhe a pele e entranhava-se nos ossos, uma dor fina que a moía por dentro, as pernas doíam-lhe a cada passo que dava.

Ia descalça, como sempre. Nem dinheiro para pão havia, quanto mais para sapatos. O pão era o de sábado até que chegasse o seguinte e, se tivessem sorte, à sexta tinham migalhas. Enchiam a barriga com o cheiro que ficava na gaveta e nada mais. Se a sopa se fazia de água e hortelã e o conduto nunca chegava ao prato de todos, não era em sapatos que se ia gastar o pouco que se tinha.

Os pés aguentavam. Sola mais dura que a de qualquer sapato e uma sujidade entranhada que não havia sabão que tirasse. A única coisa boa que vinha com o frio é que não havia caminho nem estrada que a magoasse de tão dormente que estava. 

"Deus não devia permitir isto", pensava. Nunca tais palavras lhe saíram da boca, mas aquela ideia ficou-lhe. Deus não o devia permitir. Pessoas como os seus pais que trabalhavam de sol a sol e mesmo assim não tinham o que pôr na mesa, não deviam ter filhos. Que sorte era esta que os deixava ali, gelados, com fome e sem quem os aparasse. Eram todos assim. Safavam-se os filhos dos senhores, dos que pagavam uns trocados pelo trabalho dos outros e que tinham mais do que um par de sapatos, mas tirando esses a sorte era igual para todos os outros.

Miúdos que nunca o tinham sido, que dormiam com o vento a assobiar por entre as telhas e nada mais do que um pobre lençol por cima do corpo. "Não há razão para isto" e a ideia a moer-lhe a cabeça que isto de nunca ter sido criança faz pensar muito cedo naquilo que só devia ser preocupação dos adultos. "Deus não nos devia mandar para cá", arrependia-se de tal pensamento assim que o tinha. Era verdade que não havia nada mais forte que a vontade d'Ele, mas se fosse a pensar bem que raio de vida era aquela que castigava desde do berço?  Que vida era aquela em que o frio entrava-lhe pelo corpo e entranhava-se nos ossos sem nunca sair? 

A vida iria mudar. Um dia iria ter tecto a esconder as telhas e o vento ficaria do lado de fora da porta. Um assobio profundo nos dias piores e sempre do lado de fora, mas isso seria muito mais tarde e mesmo nessa altura ela ia sentir o frio a moer-lhe os ossos como se a tivessem a bordar por dentro com uma agulha. O aquecedor encostado às pernas velhas e o frio da meninice a cortá-la por dentro. "Deus não devia..."

Comentários

  1. Tempos difíceis, sem dúvida!
    Lembro-me da minha avó dizer que no inverno punham um lençol branco por cima da cama porque acreditavam que assim o frio da geada não passava as mantas e não chegava ao corpo.

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