O frio que o corpo aguenta

O cobertor que a cobria durante a noite, não tinha peso para afastar o frio que chegava no Inverno. Quando era hora de acordar, o corpo levantava-se dormente. Por aquela altura, o dia podia amanhecer de céu limpo, mas a verdade é que o sol nem pelo meio-dia prometia calor. Era assim Janeiro, mês em que o que faltava em dinheiro sobrava em gelo. 

Era esse frio que agora lhe entrava pelo corpo e cercava os ossos prendendo-lhe os movimentos. Uma dor fina a que já se habituara a ter como companhia nos dias frios, alastrava-se pelo interior do seu corpo começando quando os pés tocavam no chão e abrindo caminho pelo corpo de miúda até à nuca voltando a descer num arrepio discreto. A roupa não ajudava a acalmar o frio. Saia e meia até ao joelho que as regras da casa ditavam que calças era para os homens e as contas não deixavam folga para collants. Casaco de malha abotoado até cima como abafo. Nada mais. Tão eficaz como o cobertor, mas o corpo habitua-se. O que seria dele se assim não fosse. 

Fazia o caminho com os sapatos de solas pouco mais que meias, mãos roxas e nariz vermelho. O frio caía sem que fosse visto, mas sentia-se o vento a cortar as faces e a queimar por dentro a cada inspiração. O caminho tornava-se longo, os passos custavam, a nuvem branca que lhe saía pela boca embaciava o caminho. Uma provação que era esquecida quando, ao fundo da estrada, a curva abria para o campo que no dia anterior era verde. 

Uma camada fina de gelo cobria tudo o que conseguia ver. Era o mais próximo que estava de ver neve tal e qual como a imaginava: um campo branco a prolongar-se até onde a vista deixava e que lhe aquecia o corpo que só conhecia gelado.

Deixava-se ficar pelo tempo que podia. O corpo a gelar e ela sem o sentir, o calor da imagem da neve a dar-lhe alento. Diziam que Deus dava o frio conforme o corpo aguentava. Ela acreditava que Ele dava-lhe o vislumbre da neve naquele campo de gelo para a compensar do gelo que vivia no seu corpo.

Comentários

  1. Lindíssimo texto. Mais um para arquivar à espera que chegue para encher o livro
    que todos, estou certa, desejamos.
    Como ainda estamos em Janeiro, um feliz Ano Novo.
    Beijinhos amigos

    ResponderEliminar
  2. Sempre ouvi a minha avó contar que no dia em que a minha mãe nasceu (11/01/1945) o meu avô encheu o tanque de lavar a roupa com neve, e lembro-me de em miúda ir para a escola a pé e adorar ver o telhados das zonas mais baixas da aldeia branquinhos de gelo, também me recordo de por vezes a água congelar nas torneiras e de a minha mãe dizer que se deveria por um lençol branco por cima dos cobertores da cama para não se sentir tanto frio, não sei se era eficaz mas era o que havia…
    Bjs

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Naquela altura o frio era mesmo psicológico. Tinha de ser assim.

      Beijinhos

      Eliminar
  3. Mais um belo momento de leitura e eu gostei de ler... Bj e por aqui muita geada

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada.

      Por aqui também houve muita geada. De manhã os campos estavam completamente brancos.

      Beijinhos

      Eliminar
  4. Mas que frio... na natureza e na alma!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Mesmo muito frio naquela altura e hoje estamos sempre cheios de queixas por causa do tempo e andamos sempre de casacos, luvas, chapéus... Como os tempos mudam (e ainda bem)

      Beijinhos

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares