O trato da roupa

- Quando chegar quero tudo feito. 

E saía. Sem beijo ou desejo de bom dia, fazia-se ao caminho com o olhar da filha a acompanhá-la da porta de casa. Via a mãe mingar, de cesta à cabeça, até desaparecer para lá do que os seus olhos alcançavam. Só aí voltava a casa. Esperava-a o trabalho que as paredes acumulavam e que nunca estava feito. Ela, feita mulher quando nem tinha idade de escola, fez-se ao que era sua obrigação, sem se ouvir queixume. 

Subiu para o tijolo que lhe dava o que faltava em altura, e mergulhou as mãos na água do tanque que guardava em si o frio da noite e esfregou a roupa. Os nós dos dedos a doer, a carne a ficar vermelha e ela sem dar tréguas ao sabão. As mãos a esfregar uma na outra a roupa que cheirava a trabalho e que mergulhavam na água dando-lhe umas quantas voltas até que o sabão desaparecia. 

Com a ajuda de um galho escolhido de propósito para o efeito, levantava o arame pesado da roupa encharcada em água antes de voltar para dentro. Sem parar para respirar. Sem dar descanso aos braços ou às pernas. Ou os corpos novos aguentavam muito ou a cabeça esquecia a dor.

Dentro da cozinha, o fogão confortava aquilo que a escassa roupa negava. Em cima da mesa de madeira onde almoçavam e agora transformava em tábua, esticou o lençol de sempre. Encheu o ferro com brasas acesas e fechou-o à espera que ganhasse calor. Esticou a roupa bem esticadinha, com a mão a percorrer o tecido de ponta a ponta sem deixar passar um vinco que fosse e ferro quente lá em cima para dar o calor. O peso era tal que os seus fracos ossos davam sinais de fraqueza, mas não havia nada que vergasse. Para um lado e para o outro, mais força de braços que calor de brasas e quando já estava o trabalho quase terminado, lá se escapava uma cinza. Coisa pouca, mas o suficiente para não haver sacudidela ou sopro que a safasse. A camisa lavava, quase passada, e um borrão logo ali à vista. 

- Antes assim que fagulha. 

Dizia para si que ali ninguém a ouvia, enquanto encolhia os ombros e voltava ao tanque. O ferro ainda quente, o corpo tão habituado a estar dormente que nem sabia que é assim que está e o trabalho a fazer-se. Até que chegue a noite. Foram as ordens que deixaram.

Comentários

  1. Por instantes recordei a labuta do meu pai... alfaiate de profissão!!! Gostei de ler... Bj

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  2. Meu Deus! Tão longínqua essa realidade. As coisas, felizmente, mudaram.
    Magnífica a forma deste texto.
    Beijo

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  3. Que lindo texto que me fez pensar nas minhas avós! :) Beijinhos
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