De geração em geração

Quando se faziam ao caminho já a noite ia longa e os seus corpos bem regados. Como é que aqueles fígados se safavam com tanto álcool é um mistério que ninguém sabe bem explicar. Talvez estivessem em conservação, como um qualquer objecto de estudo. Mas era certo que de noite, ao fecho da taberna, lá iam eles para casa. Tortos, passos trocados e língua enrolada num idioma que nunca foi registado. As bicicletas esperavam-nos à porta para os levar de volta.

Tal como as bicicletas dos netos os esperavam sempre que o tempo o permitia, quando a escola e o São Pedro davam folga e o São Pedro. Esses, miúdos que não sabiam o que era o perigo, faziam-se à estrada a direito, sem álcool que lhes trocasse os pés, mas com a adrenalina a convencê-los que eram os reis ali do sítio.

Os homens, de pé direito assente no pedal, elevavam o corpo por cima da bicicleta já em andamento num movimento tão ágil que, por momentos, fazia acreditar que estavam sãos. Não estavam, nunca estavam. Aquilo era bebedeira que já traziam consigo há uns bons anos e que renovavam todas as manhãs. Todos assim. Uns mais, outros menos. Ou outros que sabiam disfarçar em melhores condições.

Os miúdos, a achar que o mundo lhes pertencia, faziam cavalinhos no meio da estrada sem se preocuparem que mal sabiam andar a direito. Vermelhos e suados, sem chapéu que os protegesse do sol ou capacete que amortecesse as quedas. Sabiam lá eles o que era isso do capacete. Depois lá havia um que travava só com o travão da frente e, depois de um salto por cima do guiador, lá ia de arrojo pelo alcatrão. 

De dia, as estradas eram dos mais novos. De noite, dos que já iam tocados. Em casa, alguém os esperava. De coração apertado, fosse pelo que fosse, até que os ouviam chegar. As rodas na terra batida, o chiar dos travões e a bicicleta esquecida até ao dia seguinte.



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