É preciso desenrascar

Os pais deixavam-nas em casa, sozinhas. Miúdas de pouca idade e ali ficavam à sua sorte, com uma tia mais velha a deitar-lhes um olho e uma casa para tratar. Só chegavam ao tanque empoleiradas num tijolo, mas lá se faziam à vida. Só os mais novos, aqueles que ainda pediam colo e a companhia da mãe, é que iam para o campo com os pais. Os outros, mais velhos e numa meninice que pouco tinha de infância, ficavam em casa.

Elas, vizinhas desde que se lembravam de ser gente, aproveitavam a ausência dos pais para fazer das suas numa liberdade que durava tanto quanto o sol. 

As mulheres sabiam que quem era de respeito não se dava ao desgoverno que havia sempre quem estivesse à espera de uma oportunidade para apontar o dedo aos outros, mas as miúdas sabiam lá o que era isso. O que elas queriam era espetar o dedo na massa do bolo ainda antes de ele ir ao forno. 

Então lá se faziam ao caminho. Ao galinheiro da tia, senhora das suas idades e com tendência para dormitar profundamente durante o dia, surripiavam uns quantos ovos acabados de pôr. Assim começava, mas ninguém fazia bolos só com ovos e à mãe não se roubava nem açúcar nem farinha ou ela ainda descobria a brincadeira. Para isso era preciso recorrer à bondade das vizinhas, se é que se pode chamar de bondade quando o açúcar e a farinha eram recebidos com a promessa de que as suas mães iriam devolver em igual quantidade. Quantidade essa que as mães não sabiam, nem vinham a saber, que estava em dívida. 

E lá iam elas de volta a casa. Bolsos cheios de ovos, uma tacinha de açúcar e outra de farinha e agora era só pôr as mãos na massa. Mas a olho que elas nem sabiam o que era isso de medidas e quantidades. Era o que era, aproveitar o que havia e esperar pelo melhor. Como se com um estalar de dedos se fizesse magia.

Era verdade que o bolo lá dava um ar da sua graça e crescia. Parecia encher o peito e mostrar-se em todo o seu esplendor para depois, passados poucos minutos de apanhar a aragem da cozinha, desinchar até ficar uma amostra do bolo que podia ter sido.

De certeza que lhes tinha falhado alguma coisa, mas era certo que iam acertar. Era só esperar pelo dia seguinte.



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